O olor da noite
(base do texto “noites perfumadas” de Emmanuel Ramirez)
Entre o vazio do tempo, esquálido e abarrotado, estava ali o velho sentado, inerte em sua poltrona verde musgo, onde se podiam ver as entranhas de algodão escuro que saiam por costuras rasgadas. Chovia bastante e diante da janela semiaberta, ele observava as gotas grosseiras que iam de encontro ao parapeito da sacada, explodindo uma a uma, em síncope sonoridade monótona. O dia findava-se em nuance cinza e fúcsia, e as nuvens carregadas ainda passeavam aos arredores, impassíveis, contudo derramando suas últimas lágrimas de outono. O vento rebelde que sibilava estranha melodia e parecia querer invadir cada aposento do recinto ao colidir em sua estrutura e a grama molhada com opaco orvalho ao ocaso traziam fortuitas memórias que já teimavam em desaparecer de seus sonhos, no entanto, em um lapso repentino, um tímido relâmpago iluminou o horizonte ao longe, seguido do brado desafiador do ríspido trovão, que vinha num crescendo anunciar sua presença absoluta. Tudo se apagou. As luzes se desvaneceram e o idoso senhor descompassadamente rememorou parte de sua vida, quando iniciara sua juventude. Sem respostas, ficou inerte, taciturno...
De maneira vaga pensava nos seus treze, quatorze anos, e ao som de gargalhadas eufóricas, descompromissadas, já não sabia ao certo sua própria cronologia. Rostos ainda sem face acompanhavam-no em procissão por bosques inóspitos, porém outrora explorados. A turma reunida no quintal de vovó aguardando o saboroso lanche vespertino, que farejavam a distância. O colégio, professores, as fugidinhas da classe, as meninas... ahhh as meninas era tantas e formosas. Suas primeiras descobertas esboçaram-se novamente, como experimentara naquelas épocas, mas agora com um sabor renovado de quem olha com orgulho um paraíso perdido no tempo. Por fim, surgiam algumas cenas ainda turvas e desmembradas, de pequenos seres amasiados, não denotando o ardor erótico em que seus muitos platonismos pré-adolescentes concretizaram-se, mas em um sutil esforço mental, o velho buscou em seu âmago a sensação do encantamento apaixonado vivido em tenra idade.
Apesar de quase tudo parecer exaurido de sua mente, aos poucos, imagens e sorrisos flutuavam ao seu redor naquele instante. Pensamentos esparsos como borboletas. Algo mágico estava acontecendo. Não se sabe o que, ou algum porquê, mas ela estava ali... sim, era ela...
Questionava-se em seus noventa e poucos mal vividos, que amar já não parecia fazer sentido há um tempo, ou simplesmente desaprendeu o que era. Desde sua viuvez no natal de sessenta e sete, para ele, o amor tornou-se uma espécie de enigma universal, do qual foge a razão e não se encontra solução táctil na humanidade. A grande verdade é que já estava nesse asilo há mais de uma década, e até então, nada havia acontecido, além de sonhos apagados e uma saudade do que não vivera, contudo, algo era diferente naquela noite...
Ela continuava ali. Insistia em bailar por todos os cantos do quarto. A lembrança do vestido curto e colorido não vinha tão presente como o suave perfume que agora habitava novamente cada uma de suas narinas e vibrissas. O sublime odor se materializava gradualmente e trazia consigo o contorno e os belos traços joviais da mocinha. Por um instante, tudo estava repleto dela. Sem entender esse lancinante resgate do passado, disparado em taquicardia, o velho respirou ofegante, tentando encontrar no ar um pouco mais daquela jovem que agora dominava seus extintos instintos, chamas tardias. Apalpar, capturar o invisível, a presença oculta que o visitava depois de longos e aguardados anos, era o que mais desejava. Sua visão deveras afetada pelo tempo, já compartilhava com o olfato um novo sentido. Percebia atônito a estonteante feição daquela que já lhe trouxera outros da mesma espécie.
Ao velho, que amargara seus longos anos de solidão, somente importava a certeza de que ela veio pra ficar desta vez, e já não existia saudade, tristeza ou qualquer enfermidade do corpo e da alma. Convicto de que amara uma vez de verdade, cria, e estava satisfeito. Redescobriu algo milagroso que permanecia guardado em seu corpo cansado e doente. O amor. E Isso bastava a ele por aquele momento e talvez por toda sua vida, que fora vazia. Em um único ato, solilóquio, inspirou o máximo de ar que cabia nos seus fracos pulmões, e encheu-se de uma vitalidade nunca sentida. Ele a tragou por completo. Todo seu donzel aroma... inocente, febril. E exalou sob o manto noturno seu último suspiro de amor, em êxtase.
O dia amanheceu em silêncio, descansado e em paz.